"FRAGMENTOS DO VIDRO DE PERFUME QUEBRADO":
"Mais tarde, livre do sufoco, procuraria refúgio
melhor para guardá-los e tudo bem ”.
Sem
eliminar as evidências da sua falta de jeito, ou por conta dos efeitos
previsíveis sobre o que havia acontecido, respondia assustado. No movimento
ágil de abaixar e revirar o rosto, seu cabelo ondulado e sempre bem assentado se
desalinhara. Foi por um instante, que ele conseguiu identificar, como num sonho, dissimulado entre mechas, oculto na desordem dos feitos e cravado em sua testa, o que parecia ser um terceiro olho bem no centro da fronte. Deparou-se no espelho, por fração de instante, com sua expressão assustada e sentiu iniciar o processo de busca do entendimento sobre a sobrevivência, cobrando de si mesmo as primeiras certezas sobre o inconsciente.
Não se espantou com o que via, pois o tempo era curto, mas tinha urgência
em encontrar lugar aonde guardar as farpas cortantes dos cacos do vidro de
perfume. Um pote azul claro de opalina
contendo
grampos para cabelos pareceu-lhe o nicho ideal para se desfazer do rastro da
sua imprudente presença, abrigo aonde deveria permanecer precária e
temporariamente.
Guardou ali,
pois, o que restara de cacos do frasco que havia quebrado.
Envolvido
pela fragrância a se desfazer no vazio do aposento, buscava sua imagem
refletida, enquanto com a ponta dos dedos afastava da testa um chumaço de
cabelos soltos a impedi-lo de ver
por inteiro seu terceiro olho. Calmamente entreabriu a franja
para se encontrarem as três írises da trinca de olhares, que como entidades
distintas, focavam o recém-chegado deles refletido no espelho.
Na
avaliação do caminho percorrido, o que vinha de ocorrer – o fato do vidro de
perfume se espatifar contra o granito do móvel - facilitava também o pleno
entendimento do contexto. E intuiu, que poderia contribuir com maior
consistência na experimentação de conviver com o fenomeno de sentir naquele presente,
mesmo que fosse por uma fração de instante apenas, emoções iguais as que poderia
vir a reviver no futuro, já sendo ele mesmo, adulto pronto e acabado.
Na verdade, enquanto vivia seu cotidiano e sem saber, o menino negociava
a possibilidade de cada um ter o direito ou não, de sacar para uso imediato
sobre o estoque de satisfações a se dispor para a eternidade. Acrescentando aos
antigos talentos naturais essa nova aptidão, que viria a ser a plena visão do terceiro
olho, nada de novo ou relevante acontecia, além de proporcionar ao sentimento
da amargura, de um lado e ao da plenitude no outro, se tornarem mais evidentes
e perceptíveis como se a alma estivesse à nú. Estático e espantado frente ao
fenomeno que acompanhava acontecer, foi tomado por incontida vontade de chorar.
Por instantes cismou e em seguida pranteou sem medo do reencontro com mais um ele de todos os outros, que desde
sempre, mal e mal, se acomodaram nele mesmo. Por conta de toda aquela angústia
os três olhos vertiam lágrimas em cores vivas a lhe umedecerem a fuça. Não
estava mais triste, apenas extasiava-se frente o infinito que a nova visão lhe
possibilitava, além do reflexo a repetir que de fato não existia o periscópio mágico,
assim como não se escondiam no desconhecido os novos rumos àtrás da porta. O resto do perfume
rescendia no quarto e do alto das janelas pendiam as cortinas de veludo verde,
semi-ocultas sob o vual, até o assoalho recoberto pelo tapete espesso. Era ali
que as lágrimas se reencontravam a fim de concluir o cenário original para os fatos e
criar de novo o conjunto de matizes desiguais a se completarem.
Em meio
a seus devaneios a cama dos pais do menino começou a crescer como no sonho e a
se transformar no convés de um navio muito grande. As lágrimas intensas
vertidas pelo personagem se
convertiam em mar sobre o tapete a desaparecer nas sombras ocultas
sob a cama do casal.
Lá, na
neblina da intimidade se harmonizavam encostas e mares em enseadas de curtas
ondas agitadas. A visão era a de um oceano em formação e no fundo escondia-se o
infinito. Como esboço inicial, via as linhas mais próximas, pois as mais
distantes desenhavam uma grande parábola e sobre o traço esfumado deixado pela
curva irreal do horizonte, flutuava o barco solitário onde os mesmos personagens,
à bordo, aguardavam o início dos acasos, em especial daqueles em que o menino se
envolvia, levado pelas trilhas do destino.
Desejou
saber o que enxergavam lá do alto as gaivotas e teve vontade de voar com elas.
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