segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

CONFORME HAVIA SIDO COMBINADO, AQUI ESTÁ A SEGUNDA PARTE DO CONTO
"FRAGMENTOS DO VIDRO DE PERFUME QUEBRADO": 
"Mais tarde, livre do sufoco, procuraria refúgio melhor para guardá-los e tudo bem ”.
Sem eliminar as evidências da sua falta de jeito, ou por conta dos efeitos previsíveis sobre o que havia acontecido, respondia assustado. No movimento ágil de abaixar e revirar o rosto, seu cabelo ondulado e sempre bem assentado se desalinhara. Foi por um instante, que ele conseguiu identificar,
como num sonho, dissimulado entre mechas, oculto na desordem dos feitos e cravado em sua testa, o que parecia ser um terceiro olho bem no centro da fronte. Deparou-se no espelho, por fração de instante, com sua expressão assustada e sentiu iniciar o processo de busca do entendimento sobre a sobrevivência, cobrando de si mesmo as primeiras certezas sobre o inconsciente.

Não se espantou com o que via, pois o tempo era curto, mas tinha urgência em encontrar lugar aonde guardar as farpas cortantes dos cacos do vidro de perfume. Um pote azul claro de opalina
contendo grampos para cabelos pareceu-lhe o nicho ideal para se desfazer do rastro da sua imprudente presença, abrigo aonde deveria permanecer precária e temporariamente.

Guardou ali, pois, o que restara de cacos do frasco que havia quebrado.

Envolvido pela fragrância a se desfazer no vazio do aposento, buscava sua imagem refletida, enquanto com a ponta dos dedos afastava da testa um chumaço de cabelos soltos a impedi-lo de ver
por inteiro seu terceiro olho. Calmamente entreabriu a franja para se encontrarem as três írises da trinca de olhares, que como entidades distintas, focavam o recém-chegado deles refletido no espelho.
Ficava claro à partir do terceiro olho, de como a genética tinha suas trilhas e seus traços a tornar o novo olho dele ligeiramente amendoado, mas mantinha a pupila verde - coisa rara naquelas bandas - assim como as da mãe e, comparado ao par castanho dos outros dois que chegaram antes dele a criar base para o triângulo visual.

Na avaliação do caminho percorrido, o que vinha de ocorrer – o fato do vidro de perfume se espatifar contra o granito do móvel - facilitava também o pleno entendimento do contexto. E intuiu, que poderia contribuir com maior consistência na experimentação de conviver com o fenomeno de sentir naquele presente, mesmo que fosse por uma fração de instante apenas, emoções iguais as que poderia vir a reviver no futuro, já sendo ele mesmo, adulto pronto e acabado.

Na verdade, enquanto vivia seu cotidiano e sem saber, o menino negociava a possibilidade de cada um ter o direito ou não, de sacar para uso imediato sobre o estoque de satisfações a se dispor para a eternidade. Acrescentando aos antigos talentos naturais essa nova aptidão, que viria a ser a plena visão do terceiro olho, nada de novo ou relevante acontecia, além de proporcionar ao sentimento da amargura, de um lado e ao da plenitude no outro, se tornarem mais evidentes e perceptíveis como se a alma estivesse à nú. Estático e espantado frente ao fenomeno que acompanhava acontecer, foi tomado por incontida vontade de chorar. Por instantes cismou e em seguida pranteou sem medo do reencontro com mais um ele de todos os outros, que desde sempre, mal e mal, se acomodaram nele mesmo. Por conta de toda aquela angústia os três olhos vertiam lágrimas em cores vivas a lhe umedecerem a fuça. Não estava mais triste, apenas extasiava-se frente o infinito que a nova visão lhe possibilitava, além do reflexo a repetir que de fato não existia o periscópio mágico, assim como não se escondiam no desconhecido os novos rumos àtrás da porta. O resto do perfume rescendia no quarto e do alto das janelas pendiam as cortinas de veludo verde, semi-ocultas sob o vual, até o assoalho recoberto pelo tapete espesso. Era ali que as lágrimas se reencontravam a fim de concluir o cenário original para os fatos e criar de novo o conjunto de matizes desiguais a se completarem. 

Em meio a seus devaneios a cama dos pais do menino começou a crescer como no sonho e a se transformar no convés de um navio muito grande. As lágrimas intensas vertidas pelo personagem se
convertiam em mar sobre o tapete a desaparecer nas sombras ocultas sob a cama do casal.

Lá, na neblina da intimidade se harmonizavam encostas e mares em enseadas de curtas ondas agitadas. A visão era a de um oceano em formação e no fundo escondia-se o infinito. Como esboço inicial, via as linhas mais próximas, pois as mais distantes desenhavam uma grande parábola e sobre o traço esfumado deixado pela curva irreal do horizonte, flutuava o barco solitário onde os mesmos personagens, à bordo, aguardavam o início dos acasos, em especial daqueles em que o menino se envolvia, levado pelas trilhas do destino. 
A cena continuava jornada adentro e as ondas se prolongavam a sacudir águas onde se via a diferença nas cores das lágrimas de cada um dos olhos que alimentavam a imensidão em verde translúcido e multifacetado. O terceiro deles, recém-estreado, optara por reinventar nuances e, em contrapartida ao tom esmeralda original, vertia lágrimas com variações que iam do amarelo ao encarnado e, dali ao violeta. Na paisagem do mar se formando surgiam sinais aonde em vôos rasantes, pássaros seguiam o talho assinalado pelas quilhas dos navios na superfície da água de cheiro, coberta de tais coloridos ressurgidos de sua cor original. À luz do sol, declinava o entardecer para se aninhar em rebarbas de horizontes, enquanto sua sombra o seguia submissa sob os pés.

Desejou saber o que enxergavam lá do alto as gaivotas e teve vontade de voar com elas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário